O presente documento é um recorte de jornal que integra o acervo pessoal do Sr. Emiliano de Andrade. Encontra-se em sua carteira junto aos documentos de identificação pessoal —Cédula de Identidade, Carteira Nacional de Habilitação, Cadastro de Pessoa Física etc.—, ao lado de outros de natureza afetiva, como retratos da esposa, do neto etc. O recorte — enquanto documento do Sr. Emiliano — é único, apesar da informação veiculada (a imagem) apresentar-se como uma reciclagem. Na realidade, o documento de interesse para o historiador do período pós-64 é a matéria do jornal, associada à imagem que a acompanha, e não o recorte do Sr. Emiliano, a despeito deste trazer uma imagem tecnicamente idêntica. A importância da notícia enquanto fato jornalístico — foi a primeira manifestação pró-anistia feita por uma torcida de futebol, por uma das grandes torcidas brasileiras — costuma desvincular-se da função exercida pelo documento nas atividades do titular do acervo.
A mesma imagem serviu para a criação de documentos diferentes, com funções e titularidades diversas. A imagem da torcida do Corinthians representa uma informação que foi reproduzida em diferentes documentos desde sua criação até a reprodução do recorte neste trabalho. Em cada um desses momentos, a informação primária permanece constante; a imagem em si mantém-se praticamente inalterada, salvo algumas modificações em sua resolução gráfica. No entanto, em cada caso ela integra um novo documento, com funções e titularidades diferenciadas (o que é o mais significativo para a contextualização documental). Apresenta também mudanças no suporte documental (negativo, positivo, fotolito, papel-jornal, disco magnético, papel alcalino), na técnica de reprodução (fotografia, impressão gráfica, impressão computadorizada) e na espécie documental que configura.
A tabela adiante exemplifica as transformações ocorridas na imagem, do ponto de vista do contexto documental:
Tabela 1 – Diferentes contextos da imagem da torcida de futebol
Fonte: LOPEZ, 2003, p.79
A reciclagem da informação promovida pela utilização posterior do documento não deve ser confundida com a função para a qual ele foi produzido. Deste modo, a partir do momento em que um banco de imagens recontextualiza a imagem do recorte de acordo com os interesses de seus pesquisadores, ele está produzindo, na realidade, um novo documento, ao invés de apenas estar disponibilizando uma informação de um fundo privado para os consulentes.
Esse exemplo ilustra que os conteúdos informativos de documentos arquivísticos (pessoais, ou não) quando descolados do contexto de produção podem permitir múltiplas interpretações. No entanto, a redescoberta do sentido original para o titular do acervo apenas será possível se a teoria e os princípios arquivísticos se mantiverem intactos, re-compondo a ordem original da produção arquivística.
Devemos estar atentos, ainda, para o fato de que o documento de arquivo é produzido em série, justamente por ser fruto de atividades administrativas rotineiras de seu produtor e preservado como prova de tais atividades. O documento de arquivo, além de ser definido através de seu contexto de produção, não apresentará a informação de modo isolado, porém correlacionada aos outros documentos da mesma espécie, criados no exercício das mesmas funções. Tais documentos, mesmo sendo diferentes em suas individualidades, por se referirem a informações específicas, são similares no formato e no papel desempenhado no cumprimento das atividades do seu produtor. O documento de arquivo se relaciona ainda com outros, de outras espécies documentais, que lhe serão complementares, pois foram criados pela mesma atividade administrativa.
O verdadeiro desafio dos arquivos pessoais consiste em identificar as inter-relações entre as atividades do titular e os documentos por ele produzidos/acumulados. Consiste em, a despeito da presença do instigante tema da campanha da anistia, centralizar os esforços em compreender as atividades do titular: a militância política do Sr. Emiliano. Tais desafios, por conta da possibilidade de guarda corrompida dos acervos pessoais, somada à organização documental sempre posterior à morte do titular fazem dos arquivos pessoais um universo muito delicado do ponto de vista da arquivologia. Somente a árdua recomposição do contexto de produção documental (que muitas vezes se afasta completamente da informação primária do documento) é capaz de dotar tais acervos de significado arquivístico, resgatando a organicidade inicial dos documentos.
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